Capítulo Segundo - Amor e Música


Capítulo 2

                _Porque ele tem namorada! – retrucou Giovanni trancando o portão da casa.
                Eles entraram juntos e continuaram a discussão ignorando a mãe que estava na sala os observando.
                _E daí? Ele vai te dar aulas e não te namorar! – ela revidou.
                _O que houve? – dona Jucelia interveio na conversa, ficando entre eles.
                _Mãe! O Lucca nunca conversa comigo, nunca! – choramingou – Daí um milagre do mundo cósmico acontece e esse ser de outro planeta faz ceninha na frente dele! Paguei o maior mico na escola! – apontou para o irmão.
                _Ele estava dando em cima dela!
                _Isso é verdade, Anne? – a mãe sorriu e o irmão grunhiu irritado, pois sabia que não teria apoio.
                _Não! Claro que não... ele me viu passando mal e só quis ajudar. – encolheu os ombros sabendo que era apenas isso.
                _Estava sim! Quando cheguei perto deles ele estava segurando a mão dela! – Anelyse abriu a boca surpresa, não achava que o irmão tinha visto – Depois ainda mexeu no cabelo dela, mãe!
                _E daí? – respondeu a mãe, seus olhos brilhando em expectativa, já que no último ano só ouvia o nome do rapaz sendo suspirado em todos os cantos da casa – Aconteceu isso mesmo?
                Anelyse confirmou, mas não enxergava a situação da mesma maneira, mas como uma forma dele demonstrar solidariedade.
                _Mas esse daí estragou tudo. Mesmo que o Lucca tivesse alguma intenção, deve me achar uma criança agora. – resmungou.
                _Porque será? – desdenhou Giovanni saindo para a cozinha.
                _Idiota! – berrou ela – Mãe, pede para ele me deixar em paz!

                _Filho, volta aqui. – o menino parou no corredor e encarou as duas que estavam em pé no centro da sala, entre a estante de mogno e o sofá novo que a mãe adquiriu no último mês. Era de veludo azul escuro e começava a formar bolinhas – Sua irmãzinha está crescendo e é natural que os rapazes reparem nela, não quero você implicando com mais nenhum.
                _Este em especifico tem namorada! – insistiu – E ela é melhor amiga da Anne.
                _Verdade? – perguntou a mãe e Anne confirmou – Bom, não se deve paquerar o namorado de uma amiga, filha. – a menina ameaçou falar mas a mulher continuou – Acho que seu irmão agiu certo em te proteger, se esse rapaz te paquerou mesmo sabendo que você é amiga da namorada dele, ele é um canalha e você merece um homem melhor.
                O tom era para encerrar o assunto, assim a mãe saiu junto com Giovanni para a cozinha a fim de terminar de preparar o almoço deles, pois precisava retornar ao trabalho.
                A mulher lembrava muito Anelyse, uma senhora de meia idade, cabelos castanhos com poucos fios brancos, não era alta, mas tinha curvas perfeitas que sempre fazia os amigos do irmão a olharem diferente. Os olhos castanhos pareciam observar tudo e todos e ela era sua melhor amiga, exceto quando Giovanni se intrometia e a fazia mudar de ideia e aceitar qualquer sugestão dele, por ser o mais velho.
                Conhecendo bem a mãe, resolveu aceitar a sentença e ir para o quarto que era no andar superior, o último de um corredor estreito. Passou pelo quarto do irmão no caminho e desejou estragar algum pertence dele, mas não o fez já que isso só intensificaria a sensação de ser uma criança perto de Lucca. Quatro anos faziam a diferença em relação a idade de ambos. O rapaz já trabalhava e imaginava que havia terminado os estudos, já que a Lidia dizia que saia com ele a noite nos dias de semana.
                Anelyse chegou próximo da mesa onde seu celular continuava carregando a bateria e o desconectou, se deitou na cama e foi checar se havia alguma ligação perdida, mas tinha certeza que não, pois ninguém nunca ligava para ela, nem suas amigas. Se surpreendeu ao ver que havia uma chamada perdida – de Sandra – e três mensagens de um numero desconhecido.
                Abriu a primeira e quase gritou ao ler.

                Anne, espero que tenha ficado tudo bem, não queria causar nenhum transtorno. Luc.

                Suspirou ao ver a assinatura, nunca imaginou chamá-lo de Luc e pareceu perfeito para ele. Rapidamente abriu as outras mensagens, pois pertenciam ao mesmo número.

                Anne, não se preocupe em responder as mensagens. Luc

                Amanhã não a encontrarei, boa tarde. Luc.

                Sentiu os olhos úmidos ao ler a última mensagem e culpou o irmão pelo ocorrido, certamente havia assustado o rapaz. Ela se encolheu na cama e não reparou quando o sono lhe sobreveio.

                Lucca dirigiu rapidamente para casa, pois estava com fome e também precisava pegar algumas partituras em seu quarto, havia esquecido quando partiu àquela manhã e também quando retornou as dez e saiu apressado para buscar Anelyse. Estacionou a frente do sobrado, trancando as portas do carro, a garagem era subterrânea e precisava esperar o portão automático abrir para estacionar, por isso optou deixar o veículo na rua. A sala estava vazia quando entrou e escura, indicando que não havia ninguém além dele próprio na residência, pois a mãe fazia questão de manter todas as janelas abertas para arejar o ambiente quando estava ali.
                Olhou para a mobília rapidamente como se procurasse algo, mas nada em especifico, a cabeça estava em outro lugar.
                O sofá branco estava disposto na parede estrema, abaixo da janela cumprida, oculto do sol por cortinas grossas em tom azul e branco. À frente uma mesa de centro de vidro, quadrada, porém com as bordas arredondadas para não machucar as crianças que costumavam visitá-los. Dona Esmeralda era enfermeira da sessão de pediatria do hospital onde trabalhava e costumava fazer amizades com as terminais, mantendo a casa aberta para os pais e as crianças sempre que precisavam de algum cuidado que não conseguiam no hospital publico.
                O homem suspirou passando os dedos abertos pelos cabelos e jogou as chaves sobre a mesinha retangular de mogno disposta na parede à frente da porta, com um espelho discreto logo acima da peça. Entrou na cozinha que era moderna, cheia de eletrodomésticos atuais e todos em tons próximos do metalizado para combinar com a cozinha de aço inox. Abriu a geladeira retirando o leite e do armário acima puxou uma caixa de cereal, colocou uma boa quantidade num prato fundo e guardou a caixa no lugar de antes. Na gaveta abaixo encontrou uma colher e foi se sentar a mesa, também em inox, que fez sua pele arrepiar com o toque frio.
                _Almoçando sozinho de novo. – cantarolou como se não se importasse – Cereal de novo! – usou um tom mais fino, de opera e riu, mastigando o alimento sem se importar muito, pois havia se acostumado às reuniões incessantes do pai que era um dos principais acionistas do hospital onde Esmeralda trabalhava e da mãe que tinha mais tempo para as crianças com câncer e seus familiares que para sua própria família. Não que não admirasse a mãe por ser tão altruísta, mas sentia falta deles. As vezes desejava voltar no tempo e ter aceito o convite do primo Ricardo para ir estudar no EUA, talvez hoje tivesse condições de morar sozinho e não precisar perceber a ausência deles.
                Puxou o celular do bolso quando os pensamentos chegaram aos acontecimentos recentes daquela manhã, pelos seus cálculos fazia um ano que conhecera Anelyse, não mais que isso, pois era o mesmo tempo em que iniciara as aulas de percepção musical na escola de Artes do bairro. Ele se lembrava bem daquele dia e o que sentiu quando aqueles olhos castanhos encontraram os seus, um misto de saudade e culpa. Saudade de alguém que ele nem conhecia e culpa porque estava namorando Lidia, uma dançarina esbelta que conhecera pouco antes, apresentada por seu primo e sua noiva Aline.
                Pensar em Lidia o deixou novamente culpado, por isso decidiu desmarcar o encontro para o dia seguinte, avisando-a por mensagem de texto. Não sabia definir o que acontecia com ele, a menina era apenas uma criança e não tinha um corpo que lhe chamaria atenção como o de sua atual namorada, ela não era divertida, não se enturmava com os grupos da escola de Artes e quase nunca participava dos eventos externos, o irmão porém, era quase sempre presente, um rapaz de divertida convivência.
                Sem pressa terminou o cereal pensando no poema que lera no caderno da garota, ela tinha futuro como compositora, fora a primeira coisa que pensou quando leu. A harmonia das palavras representava muito a melancolia dos sentimentos. A chuva chora seus sentimentos. Ela certamente sofria de amor, mas quem ela amava? Balançou rapidamente a cabeça afastando a pergunta, dizendo a si mesmo que ela era uma criança de apenas dezesseis anos, que precisava de muita ajuda para perder a timidez e cantar no próximo sábado. Lembrou-se de como ficou irritado com seu primo por ter pressionado Anelyse, ter agido como um idiota a obrigando a se apresentar dali uma semana. A expondo diante de todos na apresentação de sábado. Lembrava bem de ter quebrado uma corda do contrabaixo com a violência em que as espalmava.
                Decidiu tomar um banho e retornar ao estúdio, tinha mentido sobre trabalhar na região da escola naquela semana, havia passado na rua por acaso, pois queria encher o tanque do carro e o posto era próximo.
                _Coincidência chata. – resmungou entrando em seu quarto, largara o prato na mesa mesmo, sabia que alguém se livraria dele, cedo ou tarde. 

                _Anne? Anelyse! – ela se sentou na cama ao ouvir a voz estridente do pai a chamando, olhou o homem assustada, esfregando o rosto para afastar a sonolência – A janta está pronta e você sabe que não gosto de jantar sozinho. – reclamou.
                _Jantar? – tinha dormido tanto que não participara do almoço, espreguiçou-se e olhou para o pai – Por que sozinho? E a mãe e o Vanni?
                _Foram ao mercado.
                A menina abriu um sorriso esperançoso, dias de compra eram como ganhar na loteria, a mãe sempre levava sua bolacha preferida quando sobrava um pouco de dinheiro. O pai reparou a alegria de Anelyse e sorriu, abriu a carteira retirando duas notas de dez reais e lhe deu, beijando-lhe o alto da cabeça.
                _Por que isso pai? O senhor não pode gastar. – tentou devolver mas ele negou.
                _Compra uma balinha na escola.
                _Pai não sou mais criança para comprar bala! – riu – Mas obrigada... vou colocar crédito no meu celular e guardar o restante para ir de ônibus essa semana.
                O homem apertou os lábios sentindo os olhos marejarem, mas saiu a tempo dela não perceber.
                Anelyse admirava o pai, tinha nele o ideal de marido que queria para si, um homem companheiro, divertido, honesto e trabalhador, mesmo ganhando pouco no trabalho ou com os bicos que arrumava, fazia o impossível para que não faltasse nada na casa. Seu único defeito no entanto, era evitar as vontades dos filhos, negando passeios ou luxos como levá-los de carro a escola ou ao curso de música que fica a vinte minutos de ônibus e quase duas horas a pé. Desejava também que seu futuro esposo fosse tão lindo quanto o pai quando ficasse mais velho, pois o homem possuía um corpo atlético por ser pedreiro nas horas vagas, olhos castanho claro e cabelos lisos. Ela o comparava a atores de Hollywood.  
                Levantou-se, escovou os dentes, mudou a roupa da escola para uma calça de moletom preta e o blusão combinando, vestiu tênis e depois de arrumar os cabelos, desceu para a cozinha, afim de acompanhar o pai no jantar, porém se lembrou que agora era importante ter o celular por perto e voltou correndo para pegá-lo, retornando à cozinha com ele nas mãos.
                A mesa estava posta, a mãe havia preparado uma sopa de macarrão com feijão e o pai cortava cubinhos de pão francês amanhecido para eles mergulharem no liquido. Anelyse se sentou olhando novamente aquelas três mensagens e por mais que ficasse triste porque não o veria no dia seguinte, estava feliz em ter mensagens de Lucca em seu celular. Suspirou e com isso ganhou a curiosidade do pai.
                _Por que esses suspiros?
                _Não estou suspirando. – desconversou.
                _Você suspirou que eu vi. – riu ele, servindo a menina com uma concha generosa de sopa – Andou vendo o passarinho verde?
                Ela riu agradecendo o prato, mergulhou alguns pedaços de pão no mesmo, dando tempo para formular uma resposta, Anelyse possuía muitos defeitos, entre eles o de não saber mentir, por isso adquirira o habito de dizer sempre a verdade, mesmo que fosse a verdade simples e não o todo.
                _Então... hoje o Lucca passou por nós quando estávamos indo para a escola, acho que ele percebeu que eu não estava bem e nos deu uma carona. – os olhos castanhos estavam arregalados e encaravam o pai com certa ansiedade.
                _O Lucca, é? – ele mastigou o pão, sorria mas não era fácil admitir que sua garotinha ficava a cada dia mais parecida com uma mulher – E aconteceu mais alguma coisa além da carona?
                _Mais ou menos... – mordeu o lábio e observou como a cozinha estava limpa, provavelmente a mãe estivera trabalhando bastante naquela tarde. A curiosidade nos olhos do pai a fez ter coragem e ela despejou tudo, cada mínimo detalhe daquela manhã – Então... ele pediu para me levar amanhã, mas mandou essa mensagem falando que não virá.
                Estendeu o aparelho e o pai leu as três mensagens, erguendo os olhos para a filha.
                _Pode ter acontecido alguma coisa.
                _Claro que aconteceu! O Vani atrapalhou tudo! – reclamou voltando a atenção para a sopa e guardando o celular no bolso do casaco de moletom.
                _Filha, ele tem namorada... pode ter se dado conta do que pareceria e decidiu não te levar, apenas isso. Não culpe seu irmão por tudo.
                Concordou fazendo uma careta, Luiz tinha toda razão no que falava. Continuaram comendo em silêncio, até que ambos terminaram a sopa e ela recolheu os pratos para os lavar. Luiz retirou-se para o quarto onde foi fazer sua rotina noturna de tomar banho, assistir um jogo de futebol e esperar minha mãe para conversarem e dormirem juntos. O silêncio na casa só fazia Anelyse repetir as cenas daquela manhã incessantemente em sua cabeça, enquanto cantarolava a música da última aula. Precisava decorar a letra e as vocalizes para apresentar no sábado seguinte, pois depois do fiasco da apresentação anterior, Ricardo e Lucca a intimaram a perder a vergonha e se apresentar diante da turma.
                Se lembrou imediatamente da conversa que tiveram no domingo pela manhã quando esta foi a aula de vocal.
                _Anelyse quero falar com você. – chamou-a Ricardo, se encontraram no corredor do terceiro andar onde ela participava da aula e eles terminavam uma gravação no estúdio no andar acima.
                _Pode falar. – respondeu temerosa, parando no canto perto do bebedouro.
                Ricardo a olhou penetrantemente fazendo a garota sentir as bochechas corarem de imediato, evitava olhar para Lucca que estava a um passo do primo, logo atrás.
                _O que aconteceu ontem? Esqueceu a letra? – o tom era ríspido a deixando ainda mais desconfortável.
                _Não é que...
                _Calma Ricardo. – interveio Lucca tocando o ombro de Ricardo.
                _É que? – disse impaciente.
                _Eu fiquei com vergonha. – admitiu abaixando os olhos para o chão.
                _Achei mesmo que só cantasse por hobby. – ridicularizou.
                Ela o encarou com o maxilar trincado, parecia outra e não a tímida garota de antes. Ricardo engoliu um sorriso, pois era exatamente a reação que esperava dela, coragem.
                _Não canto por hobby, canto porque amo cantar, tenho um dom. Você só me pegou desprevenida.
                _Ah é? Desprevenida? Uma cantora não precisa estar preparada antecipadamente, ela simplesmente canta e se não souber improvisa, mas nunca, nunca mesmo deve largar o microfone e correr como você fez ontem.
                _Eu não...
                _Por isso vou te dar outra chance.
                Lucca bufou atrás dele e Anelyse sentiu que ele não queria que ela tivesse aquela chance, mordeu o lábio evitando olhá-lo.
                _Que chance? – sussurrou.
                _Sábado você fará um solo, quero que cante uma música antiga, Oceano de Djavan.
                _Essa música é muito alta...
                _Você aceita ou não? A banda pode abaixar o tom para você. – explicou.
                _Aceito.
                _Será a última música por isso terá de ficar até o fim.        
                Ficar até o final significava chegar depois das onze da noite em casa e talvez tivesse problemas, pois costumavam retornar a pé, mas não poderia perder a chance de surpreender a todos, incluindo Lucca que parecia mais irritado agora.
                _Eu fico.
                _No sábado ensaiaremos uma vez para harmonizar sua voz com os instrumentos. – e saíram de perto dela.
                O celular vibrando em seu bolso a fez voltar ao tempo real. Enxugou as mãos no avental e olhou o visor, era mais uma mensagem de Lucca.

                Como anda seus ensaios com “Oceano”? Luc

                O coração da menina disparou, pois constatou que pensavam na mesma coisa, mesmo que ele não soubesse. Olhou no relógio e beirava dez da noite, teria tempo de correr até a venda da dona Marta. Retirou o avental e gritou para o pai enquanto saia.
                _Vou na venda!
                Não ouviu a resposta recebida, pois já descia a ladeira em direção ao local. O mercadinho era pequeno, mas vendia de tudo um pouco, desde alimentos a materiais de limpeza e créditos para celular. Anelyse encostou-se ao balcão ofegante.
                _Eu estou fechando. – disse a vendedora da noite, era uma menina mal humorada que sempre se vestia de preto e usava piercing no nariz.
                _Eu sei, só quero colocar dez reais de crédito no meu celular.
                A garota bufou, revirando os olhos.
                _Já fechei o caixa. – informou.
                Anelyse ergueu os olhos para o relógio de parede, marcava nove e cinquenta e um, faltavam nove minutos para a venda fechar.
                _Por favor, é rápido. – pediu.
                _Até reabrir o caixa, já deu dez horas e eu tenho que voltar para a minha casa, viesse antes.
                _É só digitar o numero do meu celular ai, dar OK, eu te dou o dinheiro e vamos para casa! – tentou controlar o tom de voz.
                A atendente apertou o botão de um controle remoto e o portão da frente da loja começou a se fechar, era automático deixando apenas uma pequena porta aberta para a saída de clientes e da vendedora. Anelyse a encarou esperando ser atendida.
                _Não vou reabrir o caixa. – informou.
                _O que custa você me atender? Nem deu o horário de fechamento do mercado! – indignou-se.
                Lentamente a atendente ergueu os olhos para o relógio na parede depois olhou para Anelyse com desdém, a impressão que passava era de total desprezo.
                _Falta quatro minutos, até abrir o caixa, já passou do meu horário, eu sempre encerro dez minutos antes. – olhou para Anelyse que claramente não sairia do lugar e acrescentou – Além do mais, vocês estão devendo vinte e cinco reais das compras fiado e não posso mais vender fiado.
                _Mas não ia pedir fiado, eu trouxe dinheiro! – gemeu constrangida.
                _Vai pagar a divida?
                _Não, só tenho dinheiro para o crédito.
                _Então sinto muito.
                A garota retirou a camiseta do uniforme, revelando uma camiseta preta com uma banda de rock estampada na frente. Ela saiu de trás do balcão e foi indicando a saída para Anelyse que não pretendia sair do lugar sem ser atendida.
                _Eu cheguei no horário e exijo ser atendida!
                Estava com o coração a mil, desejava poder responder as mensagens de Lucca e sentia os olhos marejando pelas negativas da atendente.
                _Desse tamanho, eu duvido que tenha para quem ligar. – alfinetou apontando para o corpo da garota à sua frente, em seguida apagou as luzes e saiu do mercado pela portinha. Fez um sinal chamando Anelyse que ficou tão aturdida com o comentário que obedeceu, passando direto pela mulher e seguindo de volta para a sua casa.

                O quarto estava escuro, apenas uma luz azulada clareando o rosto de Lucca, acabara de chegar do estúdio onde haviam gravado mais uma das incontáveis músicas que Ricardo escrevera e que todos sabiam não teria nenhum sucesso. As músicas eram técnicas demais e sem emoção, estudara tanto e não tinha o que mais precisava: dom para compor. Por esse motivo o contrabaixista passava tanto tempo diante do computador, tentando melhorar a melodia e a letra, procurando a rima certa ou uma harmonização como a que a garotinha tímida havia conseguido naquele inicio de poesia. Olhou para o visor do celular na esperança de ter alguma resposta referente a música que ela iria cantar, mas não se surpreendeu por não ter nenhuma, ela o havia informado que não tinha créditos. Pensou até em presenteá-la com créditos, mas sem saber a operadora seria impossível fazê-lo.
                Fechou o notebook colocando-o na mesinha ao lado da cama e escorregou para dentro do edredom, era por volta de dez horas da noite, não tinha sono, mas esperava que a escuridão lhe trouxesse o sono desejado e talvez alguma inspiração, porém passados vinte minutos continuava totalmente desperto. Virou de lado e olhou novamente o celular, no mesmo minuto o aparelho tocou e sem ver quem era atendeu.
                _Alô?
                _Oi amor, nossa... foi difícil falar com você hoje, ein! Você não ia passar aqui não? – ele fez uma careta ao reconhecer a voz de Lidia e bateu na testa silenciosamente, tinha esquecido que haviam marcado de se ver.
                _Desculpe, esqueci. Está em casa?
                _Esqueceu? Como assim você esqueceu? – ela arrastou a última palavra com indignação – Como alguém pode esquecer a mulher que diz amar?? – Lucca revirou os olhos esperando a sucessão de palavras. Por experiência sabia que devia deixá-la falar até se cansar e no final se desculpar sem explicações, ela aceitaria e ficariam bem – Me diz, Lucca, como alguém esquece da própria noiva?
                _Noiva? Perai, perdi a parte em que ficamos noivos!
                O riso foi sinistro e ele olhou o aparelho como que para ter certeza de quem estava do outro lado, ao colocá-lo de volta no ouvido se arrependeu de tê-la cortado.
                _...que iríamos nos casar, foi nesse momento que me considerei sua noiva! Mas já que se esqueceu disto também, não precisa me procurar mais. Esquece que eu existo! Tenho certeza que será fácil!
                O telefone foi desligado.
                _Caramba... – pensou em ligar e se desculpar, mas desistiu, decidindo conversar quando ela estivesse mais calma.
                _Filho? – ouviu a voz do pai e acendeu a luz do abajur, se sentando na cama.
                _To acordado. – avisou.
                Dirceu abriu lentamente a porta e acendeu a luz do quarto, obrigando a ambos a apertarem os olhos até se acostumarem à iluminação. O homem era de porte masculino, atlético, aparência de cinqüenta anos, porém com seus cinqüenta e oito bem conservados. Usava um fino óculos rente ao nariz e mantinha um sorriso afetado nos lábios finos quando estava pensativo, o que parecia ser a ocasião. Lucca tinha puxado o mesmo tom de seus olhos e o cabelo mais liso herdara da mãe. O pai se sentou na beira da cama deixando um embrulho sobre o joelho do rapaz.
                _Abra depois, é só uma lembrancinha de Búzios. – informou vendo Lucca erguer as sobrancelhas grossas, pois nem sabia que o pai havia viajado – Queria saber como você está.
                _To legal. – mentiu dando o seu melhor sorriso.
                _Filho eu sei que ando ausente, mas você já é homem feito, não precisa mais do seu velho aqui.
                _Sou homem feito desde que idade? – questionou começando a se irritar.
                _Hoje... desde hoje. – nesse momento o pai lembrou que era aniversário de Lucca, olhou o embrulho e se deu conta que o presente deveria ser bem melhor que um chaveiro talhado em madeira – Por falar nisso, feliz aniversário. – completou.
                _Obrigado. – ele não queria outra discussão, abraçaram-se e rapidamente Dirceu deixou o quarto, apagando a luz e fechando a porta.
                Lucca abriu o embrulho com um misto de felicidade pelo homem ter se lembrado de seu aniversário, mas quando se deparou com o chaveiro de madeira com o nome da cidade, percebeu que não houve lembrança alguma sobre a data, apenas uma compensação pela ausência constante.
                Sem pensar, chamou o número de Anelyse.
                _A... alô? – a menina parecia surpresa do outro lado da linha, o coração de Lucca disparou e as mãos ficaram trêmulas de repente, resolveu ignorar a reação e afastar a irritação de sua voz antes de falar com ela – Lucca? – fungou.
                _Oi... me perdoe ligar a essa hora, acordei você? – olhou o relógio de pulso e se amaldiçoou por ter ligado, pois eram quase onze da noite.  
                _Não, costumo dormir tarde. – notou a apreensão na voz dela, mas parecia ter algo mais que ele não identificou de inicio – Recebi suas mensagens, tudo bem sobre amanhã e desculpe não responder, estava...
                _Sem credito, eu sei. – interrompeu – Não foi por isso que liguei.
                _Ah não? Por que foi? – fungou novamente.
                _Não sei... – franziu o cenho, ficaram em silêncio, ambos constrangidos e ele não conseguindo descobrir o que falar, por fim desistiu – Vou deixar que durma, boa noite Anne.
                _Quer mesmo desligar? – perguntou e ele ouviu o som de algo que parecia uma porta sendo fechada.
                _Não, só não sei o que dizer. – riu sem graça e ela acompanhou a risada, puxou o ar como se estivesse gripada, fungando novamente – Você está gripada?
                _Ah não, desculpa o barulho... – Anelyse gaguejava um pouco.
                _Estava chorando?
                Ela gemeu constrangida, mas como tinha a mania terrível de jamais mentir, acabou por dizer a verdade.
                _Estava irritada, quando fico irritada ou choro ou brigo, desta vez chorei.
                Lucca sorriu com a sinceridade dela, escorregou na cama, virando de lado totalmente no escuro.
                _Quer desabafar?
                _Não, mas obrigada por se preocupar. E... ahm... ainda não comecei a ensaiar a música, mas até sábado estarei pronta, prometo. Vocês não vão passar vergonha de novo.
                _Não acho certo você cantar. – soltou ao se lembrar da discussão que teve com Ricardo sobre isto, pois Lucca era a favor de treinarem a menina antes de jogá-la aos lobos.
                _Canto tão mal assim? – a voz dela não passou de um lamento.
                _Não! Não é isso... é só que, não sei se você estará preparada. Uma semana é pouco tempo.
                Anelyse não entendia o porquê ele era tão gentil em alguns momentos e tão babaca em outros, seus olhos estavam marejados de novo, respirou bem fundo ouvindo as explicações.
                _Se acha que não devo cantar, não canto, simples assim. – o tom foi duro e ele se lembrou do modo como ela trinca o maxilar quando está contrariada, sorriu, mas se recompôs rapidamente.
                _Eu acho que você deve cantar, só não acho que tenha que ser sob pressão. Por mim ensaiávamos algumas vezes até você perder a vergonha do publico.
                A menina soltou o ar lentamente, usou a manga do pijama para enxugar os olhos. Novamente houve um longo silêncio até que ela o quebrou.
                _Por que ligou?
                _Você foi a única que realmente se lembrou do meu aniversário. – a voz saiu sonolenta, durante o silêncio de ambos, havia fechado os olhos para tentar achar o que falar e o sono começou a chegar.
                _Seus pais não lembraram? E a Lidia?
                _Meu pai lembrou, depois que me deu um chaveiro de madeira de presente. – riu chateado – A Lidia me ligou para brigar e acho que terminamos, não sei direito. Fiquei chateado... a única parte legal do meu dia, foi de manhã. – acrescentou.
                Ela sorriu com a informação, mas estava preocupada, em um único dia esteve mais próxima de Lucca do que por todo aquele ano tentando estar. Suspirou baixo e ele fez o mesmo, rindo, porém para ela a risada pareceu amarga.
                _Se quiser, podemos comemorar amanhã. Estendemos a data, fingimos que ainda é dia dez. O que acha?
                _E aonde iríamos?
                Anelyse mordeu o lábio, qualquer lugar significaria precisar de dinheiro e por ter convidado, ficava implícito quem pagaria tudo. Sorriu pela primeira vez pela menina do mercadinho não ter aceitado atendê-la.
                _Passear. Podemos sair depois do seu trabalho e comemos um lanche na Paulista, o que acha? – calculou que dois cachorros quentes e duas cocas seriam menos de vinte reais e sorriu.
                _Te pego na saída da sua escola, se seu irmão estiver por lá, você despista ele. Vou deixar o carro longe e vou a pé, se você estiver sozinha vou até você. Combinado?
                _To me sentindo uma delinqüente. – riram – Mas combinado. – ela olhou no visor do celular, faltava um minuto para a meia noite.
                _Você gosta da Avenida Paulista? – perguntou.
                _Amo... mas vou muito pouco, infelizmente.
                _O que mais gosta lá?
                _As livrarias. – riu.
                _Eu também.
                Novamente olhou no visor do celular, meia noite. Com um sorriso sapeca disse baixo.
                _Lucca...
                _Oi?
                _Feliz Aniversário! Dia dez. – acrescentou para que ele entendesse.
                Mal sabia que aquele gesto o deixara emocionado, mas disfarçou bem ao agradecer.
                _Obrigado Anelyse. Isso me faz lembrar que devo deixar que durma. Bons sonhos, princesa. Até amanhã.
                _Princesa? – sorriu bobamente.
                _Ah... outro dia explico. – disse receoso.
                _Tudo bem, bons sonhos Luc. Até amanhã.
                Desligaram, ele com o corpo trêmulo e ela com faltar de ar. A noite seria longa para ambos.


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