Capítulo 12º - Mari Scotti


Capítulo 12

                O escandaloso despertador ressoava por todo o andar superior e mesmo Anelyse deitada ao lado dele, não acordava devido ao cansaço de ter dormido muito tarde. Giovanni adentrou o quarto e a chamou tocando levemente suas costas.
                ― Anne, temos que ir, são quase seis da manhã.
                Ele estava apenas de bermudão e os cabelos desgrenhados. Olheiras abaixo dos olhos, pois não dormira direito com a mãe acordando e chorando a cada uma hora.
                ― Ah não quero ir... – resmungou escondendo o rosto embaixo da coberta – O Luc vai nos levar hoje. – lembrou e logo se colocou de pé, pois o veria.
                ― Imaginei que fosse... ele é muito grudento não acha? – saiu do quarto rindo, sem dar a chance de Anelyse retrucar.
                ― Não me importo. – disse a si mesma procurando pela calça jeans enfiada no fundo do armário.
                Possuía um defeito que abominava em si mesma, era muito bagunceira, raramente vestia uma roupa que não precisasse passar a ferro, pois as amontoava dentro do armário ao invés de deixar penduradas ou dobradas dentro das gavetas. Suspirou, pois o jeans e a camiseta branca com o emblema do colégio estavam amarrotados. Passou as peças sobre a cama e logo as vestiu, em seguida vestiu o allstar preto que usava todos os dias, logo que terminou praguejou baixinho, estava tão apressada que não tomou seu banho.
                Entrou no banheiro, se despiu e resolveu olhar as costas no espelho, pois não tinha feito desde que apanhou pela segunda vez. O espelho do banheiro pegava boa parte da parede antes do boxe o que possibilitava uma ampla visão. Virou de costas e olhou por sobre o ombro e só então entendeu o porque de Lucca ficar tão assustado em deixá-la voltar para casa. Seus olhos encheram d’água ao se lembrar do ocorrido nas noites anteriores. O final de semana tinha sido um dos piores de sua vida, mas também um dos melhores por causa dele.
                Ela tocou com a ponta dos dedos alguns hematomas que alcançava na altura do quadril, estavam arroxeados, mas muitos ainda possuíam a aparência avermelhada de sangue pisado. Muitos vergões do tamanho da cinta com que apanhou estavam saltados, com poças de sangue acumulando-se dentro deles, talvez se apanhasse de novo elas estourassem. Respirou descendo o olhar até o bumbum, estava do mesmo modo porém não tão alarmante. Havia a marca de uma mão espalmada na nádega direita que ela acreditou ser de um dos tapas daquela noite.
                Virou para o outro lado para examinar o lado esquerdo de suas costas e viu que não havia um lugar sequer que não houvesse sido marcado pelas cintadas, tapas e por marcas da vara que ele usou na sexta-feira. Se perguntava mais uma vez o que levou o pai a ser tão violento. Levantou o braço acompanhando um vermelhão que passava desde o centro de suas costas até a lateral do seio esquerdo, ali havia pontilhados de vermelho, verde e roxo, lembrou imediatamente que a cinta escapara batendo com a fivela na lateral de seu seio. Tocou e ainda sentia as dores, agora suportáveis. Resolveu se banhar e esquecer disso, o pai não poderia mais tocá-la, talvez até se arrependesse e voltasse a ser quem ela conheceu a vida toda.
                Depois do banho passou um pouco do creme que ganhou de Lucca nos locais que alcançou e se vestiu, agora estava a ponto de se atrasar, eram 06:25 da manhã. Deixou os cabelos soltos, pois não os havia lavado e desceu as escadas apressadamente para dar tempo de tomar ao menos um gole de café.
                ― Bom dia. – Jucélia estava acordada e tinha preparado o café da manhã para eles. Anelyse sorriu constrangida, era visível o abatimento da mulher.
                ― Bom dia mamãe, como a senhora está?
                Ela puxou a mochila retirando o creme de dentro e estendeu para a mulher enquanto ela respondia.
                ― Estou bem, um pouco arrependida, mas bem. O que é isso?
                ― É um creme... o Luc usou nas minhas costas e a dor diminuiu bastante. Passa nesse roxo para melhorar. – apontou o rosto da mãe que possuía uma bola no lado direito do olho.
                ― Obrigada... por falar nisso, ele está ai na porta.
                Anelyse correu até a janela e o avistou encostado na lataria. Estava de braços cruzados olhando para algo que ela não podia ver. Abriu um sorriso enorme ficando feliz imediatamente com a presença dele.
                ― Gio, vamos! – ela gritou, voltou para a cozinha e tomou apenas um gole do café fresquinho, beijou o rosto da mãe – Não deixe ele entrar sem que ele peça perdão por tudo e prometa agir como um homem deve agir. – orientou.
                ― Não vou deixar... boa aula para vocês.
                Giovanni também se despediu e saíram. Ao ouvir a porta se fechando, Lucca ergueu os olhos encontrando os de Anelyse, ele apertou os lábios e olhou para a esquerda onde estava observando quando o espiou pela janela.
                ― Oi Luc – ela cumprimentou seguindo o olhar do namorado, assim que se viu na rua percebeu o que era, seu pai estava adormecido encostado em uma árvore próximo da esquina – Que droga.  
                ― Ei cara. – Giovanni o cumprimentou e também viu o pai. Soltou um suspiro pesado sem saber direito como agir – Avisamos a mãe?
                ― É melhor. – murmurou Anelyse voltando para dentro da casa – Mãe, o pai está dormindo na esquina.
                ― Ai meu Deus! – exclamou correndo para a rua, sendo seguida por Anelyse. Ao chegarem Giovanni e Lucca carregavam o homem para dentro da residência – Por aqui... coloca ele ali no sofá. – Jucelia retornou para dentro, indicando o lugar.
                O deitaram e saíram para a rua onde Anelyse os aguardava, finalmente Lucca conseguiu cumprimentá-la.
                ― Bom dia. – selou os lábios nos dela e abriu a porta do carro – Senhora... – fez uma mesura exagerada apenas para distraí-la e fazê-la rir, deu certo. Ela sorriu e adentrou pela porta do passageiro, vestindo o cinto de segurança em seguida.
                Giovanni ficou parado à frente do portão, parecia tentar decidir o que fazer.
                ― Você está nos atrasando. – resmungou Anelyse.
                ― Vou ficar... acho que é melhor vigiar. – apontou para a casa – Boa aula maninha.
                ― Qualquer coisa me liga, tenho crédito. – avisou e ele assentiu.
                Lucca dirigiu em silêncio por quase todo o trajeto da casa dela até perto da escola, ao passarem na rua onde ele deu carona a ela pela primeira vez, sorriu timidamente. Anne que o estava observando, sorriu também adivinhando o pensamento dele.
                ― Eu estava passando mal, morrendo de vergonha.
                ― Você lembrou do meu aniversário. – disse baixinho.
                A menina sorriu e deitou a cabeça no ombro dele, na rua do colégio avistou Sandra conversando com a Flávia e a Cristiane, bufou se sentando ereta.
                ― Hoje pelo visto será um dia daqueles... – reclamou.
                ― Por que Anne?
                Com calma Anelyse explicou que aquelas garotas sempre a perseguiram na escola, dando apelidos, tirando sarro do seu peso, controlando tudo o que fazia e contou também sobre o ocorrido na semana anterior e que elas foram para a escola de música apenas para conhecê-lo.
                ― Acho que querem tirar você de mim. – finalizou a explanação fazendo um bico.
                ― Querer não é poder. – citou com um sorriso.
                Lucca estacionou na frente da escola, saiu do carro e o contornou, abrindo a porta para Anelyse, as meninas pararam de conversar para observar a cena. Timidamente Anne segurou a mão que ele estendia e saiu do carro, pendurando a mochila no ombro esquerdo.
                ― Nos falamos mais tarde? – perguntou baixinho.
                Ele enrolou os dedos nos cabelos dela, fazendo carinho até chegar a nuca e então pressionou os lábios delicadamente, iniciando um beijo doce, com gosto de saudade. As garotas se exaltaram na porta do colégio com exclamações de horror e escárnio. Lucca fingiu não ouvir e Anelyse nem se deu conta, estava concentrada em acompanhar o ritmo que ele impunha ao beijo, tornando-o mais intenso a medida que mantinham os lábios unidos. Reclamou quando ele deu um selinho e se afastou dela.
                ― Posso te buscar na saída? – perguntou a encarando.
                ― Não quero ficar mal acostumada. – argumentou com ele, mas já com um sorriso estampado no rosto.
                ― Meio dia?
                ― Sim, pode ser.
                ― Até mais tarde princesa. – ele lançou um olhar duro para as meninas que continuavam zombando e ao olhar Anelyse acrescentou – Eu amo você. Eternamente.
                A menina sorriu, afastou-se do carro e foi para a calçada, observando-o se acomodar.
                ― Até mais tarde. Também te amo.
                Deram um ultimo selinho e ele partiu para o trabalho, enquanto Anne – totalmente nas nuvens – passou direto por Sandra, indo na direção da sala de aula.
                No meio do caminho entre a escadaria e o corredor que dava para as salas, avistou Thiago, ele vestia jeans azul escuro com alguns rasgos estratégicos na coxa direita e panturrilha esquerda, um coturno com os cadarços propositalmente desamarrados por cima da barra da calça, uma babylook branca e por cima um colete preto, sem manga. Os cabelos estavam espetados, um autentico badboy que arrancava suspiros da maioria das garotas da escola, e para novo espanto das populares, ele ignorou a todas e foi de encontro a Anelyse, a abraçando pela cintura enquanto a acompanhava para a classe.
                ― E aí gata, como foi o finds?
                ― Jesus, eu sabia que você tinha algo de garanhão ai dentro! – deu um riso apontando para o peito dele – Não me lembro de você falar assim, Thiago.
                ― Só estou curtindo, gata. Ta vendo como as mina me olham com meu look mega novo?
                ― Ta meio gay, falando nisso.
                ― Brincou? – ele se espantou parando no mesmo instante de fazer piadas. Anelyse disparou a rir, o abraçou de volta negando.
                ― Estou brincando, calma. Você está lindo. Mas não precisa falar desse jeito, seja você. Elas babam mesmo que você não soubesse nosso idioma.
                ― Também me achei bonito hoje. – riram – Me arrumei para te ver... desde sexta não nos falamos. – comentou.
                ― Porque você não foi em casa falar com meu irmão. – tinha o rosto vermelho por causa da confissão dele – O que está havendo com você? Nunca foi de falar comigo.
                ― Aprendi a valorizar o que é belo. – piscou para ela.
                ― Thiago. – a voz de Cristiane chamou a atenção de ambos, eles haviam parado na porta da sala e se viraram para ela – Com dó das feias agora?
                Anelyse ficou imóvel ao ouvir o desdém, ergueu os olhos até encontrar os de Sandra que estava emburrada com a situação, mas nada fez.
                ― Talvez. – começou o rapaz, soltando Anelyse com um gesto teatral – Mas não hoje, então por favor, tenta a sorte semana que vem.
                Ouviram um sonoro “vixi” partindo de várias pessoas na sala e no corredor. Sem se abalar Thiago conduziu Anne até a mesa que ela sempre usava e depois que esta se sentou ele ajoelhou ao lado da carteira dela.
                ― Você é mal. – murmurou com um sorriso divertido – E ela vai descontar em mim assim que você for para a sua sala.
                ― Não vai. Ficou muito envergonhada para chamar a atenção hoje. – ele beijou a testa de Anelyse, mas antes que saísse ela o segurou.
                ― Posso perguntar uma coisa?
                ― Claro.
                Encararam-se até que Anelyse teve coragem de proferir a pergunta.
                ― O que você esconde que as pessoas seriam preconceituosas com você?
                Thiago olhou para os lados se certificando que ninguém os ouvia, beijou a testa dela ao se levantar.
                ― Um dia... um dia eu te conto. Boa aula.
                Anelyse ficou satisfeita por ele não revelar, já que teria no que pensar pelo resto da manhã ao invés de remoer tudo o que passou no final de semana. Estava feliz por ter Lucca, mas ainda sentia aquela amargura dentro do peito por tudo o que passou com o pai. Estava preocupada em ter deixado tudo para trás e ido mesmo assim para a escola. E se precisassem dela? Não fora egoísta ter deixado os dois sozinhos para enfrentarem seu Luiz?
                Respirou desviando os pensamentos para Thiago. Sempre o achou centrado, porém nos últimos anos percebeu que se tornava diferente de seu irmão. Giovanni continuava brincalhão, irresponsável e se tornara um dos mais galinhas da escola, já Thiago que antes era brincalhão, se tornou calado, centrado nos estudos e vez ou outra aceitava sair com alguma das populares. Ela sabia que ele adorava música, mas só o ouviu tocar algumas vezes quando ele e o irmão se trancavam no quarto para fazer um som. A única conclusão que ela chegava era que o colega era homossexual, não conseguia imaginar nenhum outro motivo para ele sentir que as pessoas teriam preconceito com ele.
                Foi tirada de seus pensamentos quando Sandra sentou na carteira da frente e se virou começando a falar.
                ― Por que não falou comigo quando chegou?
                ― Oi?
                ― Por que você não me disse oi quando chegou? Ta ficando com o Lucca e decidiu me ignorar?
                ― Claro que não. Você que estava com aquelas meninas tirando sarro de mim. Pensa que não ouvi?
                Sandra ficou em silêncio e se virou para a frente pois o professor de ciências pedia atenção da turma, mas antes comentou.
                ― Não tirei sarro de você.
                Deu de ombros, não se importava, não superficialmente. Tinha tanto para se preocupar que ter sua melhor amiga a chamando de gordinha ou dizendo que Lucca estava com ela porque resolveu fazer caridade pareciam ser coisas banais para perder tempo.
                A aula transcorreu tranquilamente, os únicos momentos perturbadores eram os que Cristiane olhava para Anelyse com pose ameaçadora. A tempestade parece estar adquirindo proporções bem maiores do que o esperado. – pensava consigo mesma.
                A segunda aula foi dividida com a turma de Thiago, pois um dos professores faltou e anteciparam a última aula daquela turma, que era de Língua Portuguesa e a professora daria aula para a turma da menina. Ele aproveitou a ocasião para sentar ao lado de Anelyse e passaram quase a aula toda brincando de forca na última página do caderno. Ninguém prestava atenção a aula dada, visto que a sala estava muito cheia e era impossível manter o silêncio. Entre uma forca e outra, ele escreveu na borda do caderno.
                “Jura não contar a ninguém?”
                Anne com o lápis que estava usando para preencher as letras na brincadeira, escreveu pequenininho ao lado da pergunta: “Juro”.
                ― Então cabula a última aula e vamos lá atrás na quadra que eu te conto. – sussurrou perto do ouvido dela causando alvoroço das populares que estavam logo atrás.
                ― O namorado dela vai gostar de saber que ela fica com outro aqui dentro. – Flavia se fez ouvir.
                Anelyse não se abalou apesar de sentir receio, Lucca não havia reagido bem quando viu Thiago proximo dela na primeira vez que a buscou. Suspirou e assentiu.
                ― Combinado. Minha última aula é de história e eu estou com notas boas.
                ― Turma, peguem uma folha de caderno e respondam as perguntas que eu vou ditar. Vale cinco ponto na média final. – falou a professora Denise acima do barulho dos alunos – Em dupla. – enfatizou.
                ― Cinco pontos? Ela quer mesmo que façamos silêncio. – riu Thiago abrindo em uma página em branco do caderno.
                ― Primeira questão: “Se suas cartas não apresentam valor literário reconhecível, os demais aspectos da obra do missionário – um representado por criações literárias com  objetivo pedagógico em relação à catequese, outro por criações desinteressadas – devem ser literariamente valorizados, sobretudo o teatro em verso”. – ela fez uma pausa na citação e continuou - O texto refere-se aos textos produzidos no século XVI por: a) José de Anchieta; b) Pero Vaz de Caminha; c) Antônio Vieira; d) Bento Teixeira;  e) Manuel da Nóbrega; f) Outro. Se responderem a última alternativa, ela deve ser justificada e indicado o autor. – afirmou.
                ― Não tenho idéia. – sussurrou Anelyse.
                Thiago bateu a mão no peito, rindo.
                ― Deixa comigo.
                As demais aulas passaram rapidamente com a companhia divertida do rapaz, que ao invés de voltar para sua própria sala, permaneceu com ela nas demais. Anne lembrava que quando eram bem mais novos, costumavam ser amigos, depois dos doze se afastaram e passaram a se tratar como estranhos. Era gratificante ter essa proximidade de volta. Com o final da penúltima aula, escaparam no momento de troca dos professores e desceram para o pátio, acompanhando o volume de alunos que seguiam o mesmo fluxo.
                ― Você vai me encrencar. – comentou Anelyse rindo, assim que se sentaram no palco ao lado da cantina.
                ― Está segura comigo, gata. – piscou.
                ― Para de dar em cima de mim. – riu – Ainda não me acostumei com você falando comigo. – confessou pouco depois.
                ― Nem eu... mas nós superamos. Sabe Anne, não sei o que me deu, simplesmente quis conversar. Você é uma garota legal.
                ― E...?
                ― E... cansei de amizades superficiais. Ano que vem não estaremos mais nesta escola... ou melhor, eu não estarei porque vou para o Exercito e fiquei me perguntando o que construí. A única amizade que com certeza vou levar, é a do seu irmão.
                ― Ninguém mais conversa com você?
                ― Conversam, mas não são amigos. Sei que só querem aproveitar minha popularidade. Quero algo diferente nesse último semestre.
                ― Quer o que?
                ― Comecemos por sua amizade. – Thiago abriu um sorriso largo e estendeu a mão que Anelyse entregou rapidamente, em seguida, sem desviar os olhos dos dela, beijou-lhe o dorso – Pronto, amizade selada.
                ― Você é muito bobo. – comentou corando – Já que somos amigos, de novo, me conte seu segredo que te conto o meu.
                ― Eu e minha boca grande... – Thiago estava constrangido. Olhou ao redor, escorregou mais para perto dela e começou a sussurrar – São dois segredos, um deles eu não vou contar ainda, porque... bem, não vou contar. Mas o primeiro eu preciso... estou cansado de esconder isso das pessoas.
                ― Você está me deixando com medo de ouvir.
                ― Já fui gordo. – falou a palavra com nojo, em seguida suavizou as feições para ela não pensar mal dele – Quando tinha uns dez anos minha mãe me levou a um nutricionista que regulou toda a minha alimentação. Pareço uma modelo comendo... não posso quase nada.
                ― Eu sei que você era gordo, fomos amigos, lembra? – ela rolou os olhos, chateada por passar um tempão imaginando qual era o tal segredos e ser algo tão bobo.
                ― Mas tem mais... – quando notou que ela prestava atenção, continuou – Fiz redução do estomago ano passado.
                ― Você fez o que? – a menina arregalou os olhos – Mas você já estava magro! Não pode fazer redução assim... você é doido?
                ― Você sabe que meus pais são ricos, foi só pedir. Como feito um passarinho, mas não corro o risco de ficar daquele jeito de novo. Quando decidi eu tinha engordado dez quilos em um mês, só porque exagerei nas batatinhas.
                Anelyse não sabia o que dizer, pois apesar de estar acima do peso, nunca foi bitolada e ver alguém – um menino – fazer uma cirurgia para emagrecer estando magro, a deixava sem fala. Após cerca de três minutos de silêncio quase absoluto, ele se levantou voltando a falar.
                ― Você me acha uma aberração não é?
                ― Porque eu acharia que é uma aberração? Muita gente faz... – antes que falasse Thiago tampou os lábios dela, quando soltou ela continuou, brava – Eu não ia falar... enfim, não tenho porque pensar isso de você. Porém, acho loucura o que fez.
                ― Nessa escola ninguém me conheceu gordo... eu não quero deixar de ser popular.
                ― Há alguns minutos você disse que queria mudanças e agora liga para a popularidade? Andar comigo já arruína seu status. – lembrou.
                ― Eu sei, eu sei... – concordou – Não acho bonito ser gordo. Algumas pessoas ficam charmosas, como você, mas eu? Pareço um botijão de gás duplicado, ganhando vida. Logo fariam um daqueles filmes de horror trash usando minha imagem, um botijão gigante derrubando prédios, aterrorizando cidadãos magros e belos.    
                ― Caramba, você é exagerado! – Anelyse riu – Mas então o segredo é isso? Tem medo que te condenei se souberem?
                Thiago assentiu, chegou mais perto dela e se sentou, passando o braço por sua cintura e a abraçando. Anelyse não tinha notado que Lucca já havia chego e estava no portão da garagem vendo toda a cena e não imaginava coisas boas de outro homem a beijando na mão ou abraçando com tanta intimidade.
                ― Não quero ser rejeitado. – confessou – Mas quero sua amizade.
                ― A minha amizade você já tem. Foi difícil a cirurgia?
                ― A principio sim, porque sempre comi muito, mas a recuperação não é complicada. Se não extrapolar não passa mal. Já pensou em fazer, Anne?
                ― Acabei de pensar. – confessou – Alem do peso me dar mais falta de ar, eu fico sem graça de ficar nua na frente de alguém. – murmurou – Como estou namorando... fico imaginando como o Luc me vê, sabe? Um neném gordinho?
                Ambos riram e Thiago se tornou mais compreensivo com ela, apesar de soar um pouco duro ao falar.
                ― Você tem de fazer por você, não por ele. Se acha que será bom para a sua saúde, vá a um endocrinologista e peça uma avaliação, com certeza ele vai te indicar a melhor cirurgia para o seu caso.
                ― Por mim... sinceramente? – Anne respirou bem fundo antes de continuar – Eu faria. Quero muito emagrecer e fazer esse povo parar de tirar sarro de mim. Nunca admiti Thiago, mas me incomoda... as vezes sonho com minha barriga me sufocando a noite... esses dias notei que não passo com facilidade na catraca do ônibus.
                ― Então faça... se quiser indico meu médico.
                ― É caro?
                ― Um pouco.
                ― Então não dá. – suspirou – Mas obrigada.
                O rapaz ficou pensativo e em seguida sorriu para ela, mas nada disse pois o sinal para o final da última aula soou. Ele levantou-se, porém Anelyse já estava agitada, recolhendo a mochila e ajeitando os cabelos.
                ― Que pressa é essa?
                ― Luc vem me buscar. Obrigada por confiar em mim, Thiago. Até amanhã. – ela o abraçou e beijou carinhosa, em seguida correu para a saída. Lucca a aguardava fora dos portões da escola – Luc – sussurrou abrindo um enorme sorriso, porém recebeu um sorriso maroto e chateado, assim que se aproximou o abraçou pela cintura – Aconteceu algo?
                ― Vou te levar para casa. – a fez começar a andar, o carro estava estacionado a poucos passos. Abriu a porta do passageiro e a fez se sentar, usava ainda o Uno preto que o pai lhe emprestava. Ao se sentar no banco do motorista não agüentou esperar e disparou a falar – Quem era o cara que estava te agarrando lá no pátio? Semana passada ele também te agarrou!
                Anelyse arregalou os olhos com as perguntas e se virou para ele, deixando a mochila no chão do carro.
                ― Está com ciúmes por isso está sério assim? – sorriu acrescentando – É só um amigo, mas ele tem essa mania de abraçar. Não é nada do que você pensou.
                ― Por favor Anelyse, mantenha as mãos dele longe de você.
                ― Tudo bem. – riu de novo – Você fica fofo com ciúmes. – comentou enquanto ele dava a partida e começava o trajeto para sua casa.
                ― Eu fico é bravo. – diante da tranqüilidade dela, Lucca acabou cedendo e sorriu – Sou muito ciumento Anne, e nem sabia que era.
                ― Não vou te trair nem nada disso, não precisa ter ciúmes. Confia em mim, ta bom?
                ― Eu confio em você. Mas sinto ciúmes. – deu de ombros – Então, como foi a aula?
                ― Boa... divertida e sua manhã?
                ― O que aconteceu de divertido?
                Ela percebeu que ele tomava um rumo diferente de sua casa, estranhou mas nada disse.
                ― Faltou um dos professores e juntamos as turmas, aí o Thiago ficou na sala comigo. Ele é um pouco piadista. – sorria ao dizer.
                ― Quem é Thiago? – questionou encarando Anelyse rapidamente e voltando a observar o trajeto.
                ― O cara de quem você tem ciúmes.
                ― Certo. – suspirou e a olhou, rindo – Você me deixa maluco ainda.
                ― Maluco porque quer, não te dou motivos para ter ciúmes... mas me diga, como foi sua manhã?
                Lucca apertou os lábios ponderando sobre o que dizer a ela, estacionou na frente de uma casa e se virou.
                ― Não fui trabalhar – confessou, Anelyse permaneceu o encarando, confusa – Fui até a sua casa, ajudar seu irmão. Anne...
                ― Aconteceu alguma coisa grave?
                Ele ergueu os olhos para a casa e depois a encarou novamente, negando mas sem muita convicção.
                ― Não grave, mas aconteceu algo. Seus pais conversaram a sós e ela decidiu que ele sairia de sua casa, mas como ele não tinha para onde ir, ofereci uma casinha que meus pais tem para ele ficar enquanto não se estabelecer.
                ― Você deu uma casa para o meu pai? – Anelyse estava espantada e furiosa – Por que não falou comigo antes de decidir algo assim?
                ― Não houve tempo, não pensei, só ofereci e ele aceitou, porém exigindo pagar um aluguel simbólico.
                ― Menos mal... me admira ele aceitar isso.
                ― Tem mais...
                ― O que?
                ― Ele aceitou fazer um tratamento com psicólogo, aceitou nosso namoro e prometeu não tocar mais em nenhum de vocês e é por isso que estamos aqui.
                Anelyse olhou em volta e viu Giovanni à frente da casinha os observando, o irmão tinha uma expressão segura e simpática, mas algo naquele sorriso deixou a garota ansiosa, ele parecia desconfiado.
                ― Como ele aceitou tudo isso?
                ― Acho que sua mãe colocá-lo para fora surtiu efeito e depois que ele viu que ajudei, disse que notou que não quero o seu mal. Palavras dele.
                ― Achei que minha mãe fosse deixá-lo voltar se ele pedisse perdão.
                ― Os detalhes eu não sei, meu amor, mas ele pediu para te trazer aqui. Vamos entrar?
                ― Ele está lá dentro?
                ― Está.
                ― Eu preferia a minha casa que eu sei para onde correr... – murmurou baixinho – Vamos. – desconectou o cinto de segurança e saiu do carro decidida, carregando a mochila no ombro esquerdo. Logo Lucca se juntou a ela, segurando sua mão – Estou com medo dele.
                ― Prometo que não sairei do seu lado e Anne, ele sabe que errou.
                ― Maninha. – Giovanni a beijou no rosto – Seu namorado é bem persuasivo, fez o papai aceitar o tratamento e ainda te pedir perdão. Não perca ele. – deu um tapinha no ombro de Lucca amigavelmente.
                ― Como assim, meu namorado? Você não disse que foi você que convenceu, mas que foi minha mãe. – disse se virando para Lucca que tinha o rosto corado.
                ― Eu omiti algumas coisas porque não queria você chateada.
                ― A omissão me deixou chateada. – Anne se adiantou e abriu a porta da casa depois que Giovanni a deixou passar. A residência cheirava a cloro e desinfetante e imediatamente soube o motivo, pois a mãe estava passando um pano úmido no piso de madeira. O pai golpeava um martelo contra o prego de uma estante que estava montando – Oi. – disse logo que todos passaram para o lado de dentro.
                Luiz se virou e encarou a filha por poucos segundos, em seguida abaixou o olhar constrangido. Por um momento ela sentiu uma pontada de tristeza ao se lembrar de tudo, mas encurtou o espaço entre eles e o abraçou, ignorando a sujeira de suas roupas que estavam cheias de poeira.
                O homem demorou a retribuir o abraço, mas quando fez debulhou-se em lágrimas sonoras, seguido por Anne que não suportou ouvir sem chorar também. Logo a sala estava tomada de pessoas fungando. Ela afastou-se do pai limpando o rosto com as costas da mão direita.
                ― Me perdoa minha filha?
                ― Claro pai. Só não faça isso nunca mais ou na próxima o senhor morreu para mim. – ameaçou.
                Ele torceu os lábios contrariado, mas concordou. Limpou o rosto na camisa e voltou ao que fazia, enquanto falava.
                ― Não me lembro muito bem dos últimos três dias, só sei o que sua mãe me contou. Posso ver suas costas?
                Anelyse olhou para Lucca e para a mãe confusa com aquela novidade, em seguida negou.
                ― O que está perdoado está esquecido, não precisa se torturar, pai.
                ― Preciso saber que eu fiz o que dizem. – murmurou mais para si.
                Ela olhou para os três homens na sala e se retirou para uma porta que logo descobriu ser a cozinha. A casa era bem pequena, mas aconchegante. A sala com piso de madeira e paredes em tom pastel, não havia móveis se não a estante que seu pai estava montando. Já na cozinha haviam armários de cerâmica envelhecidos propositalmente, em tom verde claro, porém conservados. Uma mesa com quatro cadeiras combinando com a cor dos armários e uma geladeira nova, toda branca. Não notou o fogão, mas não se preocupou com isso. Retirou a camiseta do colégio e a esticou a frente do corpo para esconder os seios.
                ― Pai, vem aqui. Só o senhor e a mãe se ela quiser. – falou mais alto.
                Ambos apareceram na porta com rostos assustados, toda a situação era bizarra para Anelyse. O que acontecera com sua família amorosa? Respirou bem fundo, tirou os cabelos das costas e se virou. A exclamação de horror da mãe exprimiu o choque no rosto de seu pai quando se virou.
                ― Eu não sei o que aconteceu. – sussurrou Luiz assustado então deu as costas a elas e retornou a sala. Anelyse conseguiu ouvir que ele falava algo com Lucca, mas não soube o que. Rapidamente vestiu a camiseta e retornou para a sala.
                ― É verdade que o senhor fará um tratamento psicológico?
                ― Vou. – respondeu virando-se para ela – E parei de beber também... eu não sei porque fiz isso filha.
                Ela respirou fundo, não queria ouvir, nem falar, nem se lembrar. De repente tudo se parecia com um grande palco onde o pai fingia-se um ator com amnésia que não se recordava de ter espancado até sangrar, a própria filha.
                ― Acho bom que se lembre e que faça o tratamento. Vamos Lucca?
                O rapaz foi pego de surpresa, por isso demorou a se mexer para irem, assentiu com a cabeça e se despediu de todos com um aperto de mãos. Ao cumprimentar o pai de Anelyse, acrescentou algo que a deixou pensativa.
                ― Até domingo, Sr. Luiz. Obrigado por aceitar.
                ― Cuide dela.
                Não suportando mais aquela cena, Anne saiu da casa sem o namorado. Encostou no carro de braços cruzados e esperou quase cinco minutos até que ele saísse. Lucca estranhou a atitude dela, mas não comentou. Abriu a porta deixando que se acomodasse e instalou-se no banco do motorista, partindo em seguida para a casa da menina.

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